E sai um pensamento fresquinho...

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Luz da Terra - Parte I

Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, quando o som das vagas de espuma que rebentavam no penhasco a fez despertar. Por momentos não se recordou de nada do que se havia passado na noite anterior e o seu coração silenciosamente agradeceu à deusa o ter atendido ao seu pedido. No entanto, no pequeno espaço de tempo entre duas batidas do coração, sentiu-se. Sentiu a dor em todas as células do seu corpo, mas pior do que isso, sentiu a dor em cada pequeno recanto da sua alma. Olhou o horizonte, contemplando o sol que já nascera e se reflectia nas águas que se estendiam até perder de vista. E desejou partir, trocar tudo o que conhecia e começar de novo, num mundo novo, para lá da nona vaga. Queria renegar tudo, a sua família, a sua tribo, até os deuses, todos os que não a ajudaram quando gritara por auxílio ao ser traída pelo seu próprio povo.

Lembrara-se então de ter imaginado como seria o mar e nunca lhe passara pela cabeça que seria assim a primeira vez que o veria. Com o corpo dorido deitado na vegetação rasteira que cobria a falésia e à sombra do grande carvalho que nascera solitário naquele recôndito lugar, fechou os olhos e permitiu-se recordar a sua infância. Pensou em Arthan e em todas as tardes que passaram juntos. Em todos os sonhos que tiveram. Em todos os barcos com cascas de nozes que construíram e largaram no pequeno ribeiro onde brincavam. Sonhavam partir juntos à aventura, e ao largarem cada um daqueles pequenos barquinhos, neles partia o seu desejo de um dia verem o mar juntos.

Quando abriu os olhos descobriu que chorava. Grossas lágrimas caiam no seu colo e apercebeu-se que a sua dor era ainda maior do que julgava ser possível. Finalmente o seu coração se abrira – amava-o! Pelos deuses! Como podia uma sacerdotisa amar um homem com tanto fervor?

As lágrimas continuavam a cair-lhe e foi obrigada a concluir que fora aquele amor que despoletara a ira dos deuses, foi o amar tanto um só homem! Uma sacerdotisa deveria amar toda a humanidade, toda a natureza, a terra inteira. E o seu nome não a deixava esquecer essa obrigação que recaíra sobre ela desde o seu nascimento. Eilir, como o Alban Eilir, festival do Solstício de Primavera, sua data de nascimento. Ela era a Terra, a Sua Luz, o Seu Coração.

Com o sol a secar as suas lágrimas decidiu descer até à praia. Sentou-se na areia, com as ondas a beijarem-lhe os pés. Encheu as mãos em concha com água salgada e banhou o rosto. Sentiu o rosto e os olhos inchados, provavelmente de tantas lágrimas que chorara, e prometeu aos deuses que não choraria mais. Baniria aquele amor do coração e seria a Sacerdotisa que o seu povo precisava que fosse. E foi nesse preciso instante, quando se colocou de pé com a mão junto ao coração para finalizar a promessa, que eles se revelaram pela primeira vez.

Primeiro não passavam de estranhos reflexos na água, mas esses reflexos, apesar da ondulação do mar, tornaram-se cada vez mais nítidos, até que Eilir conseguira distinguir claramente os rostos magros de dois seres muito altos e elegantes, cujo brilho era tão forte que quase não lhe permitia que ela os olhasse. E as suas vozes, cristalinas e insinuantes, fizeram-se ouvir claramente na sua mente, repetindo-lhe insistentemente: junta-te a nós Eilir, lava o sangue das tuas mãos, mergulha… esquece… nós podemos ajudar-te a esquecer. Ele mentiu-te quando disse que te amava e traiu-te como todos os outros! E os deuses, oh, estão tão zangados… E agora nem podes chorar, prometeste que não o farias! Vem, afoga-te… É tão fácil… Vem Eilir, vem connosco!

Sabia que tinha de esquecer, sentia-o! Sabia que mesmo que pudesse chorar, nem todas as lágrimas do mundo conseguiriam apaziguar a dor que sentia, e se não a esquecesse, não conseguiria viver, não aguentaria tal provação. Mas por outro lado – não era ela a escolhida? Sentia que existia algo de terrivelmente errado em tudo o que estava a acontecer. E foi então que percebera que tinha caminhado. O mar cercara-a, viu-se rodeada de água que cada vez subia mais. O ar faltava-lhe. Não sabia nadar! Como podia ter-se deixado levar. Agora sim, os deuses nunca a perdoariam, a sua alma estava perdida. Um profundo arrependimento tomara conta de si, mas no entanto era já muito tarde, demasiado tarde. Uma última inspiração, só água entrara nos seus pulmões, e de repente fez-se noite novamente.


(em modo de escrita)

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