E sai um pensamento fresquinho...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Luz da Terra - Parte II


As vagas continuavam a rebentar. Arthan, sentado sob o grande carvalho tentava digerir o facto de ter chegado demasiado tarde. Levantou-se, fechou o círculo de meditação que desenhara e agradeceu ao velho carvalho tê-lo acolhido sob os seus ramos protectores e sábios.
Chamou o seu companheiro de viagem, o único verdadeiro amigo que lhe restara agora que Eilir se perdera no mar.
- Vem fiel amigo! Infelizmente seremos apenas dois na viagem de regresso. – Cormac deitara-se na depressão da vegetação onde Eilir dormira. Farejara o seu rasto e obrigara Arthan a segui-lo tão velozmente quanto a sua condição humana lhe permitia.
O cachorro não atendeu ao pedido do dono, continuou imóvel, farejando as ervas em redor, e à sua maneira, percebia-se que sofria. Arthan sentara-se então ao seu lado, e pela primeira vez na sua vida permitira-se chorar. Não chorou quando perdera a sua mãe aos cinco anos, apenas um rapazinho, tinha Eilir ao seu lado. Nem aos dez anos, quando o seu pai o abandonou para ir viver para o outro lado do país com a segunda mulher, permitiu que as lágrimas o visitassem. Tinha Eilir ao seu lado! Toda a sua vida teve Eilir ao seu lado. A melhor amiga que alguém poderia ter. A criatura mais bondosa, terna e ao mesmo tempo aventureira, que partilhava com ele o mesmo amor pelas árvores e o seu conhecimento. Que partilhara com ele as suas aulas de Natureza, de Geografia, enquanto os seus colegas rapazes apenas aprendiam a esgrimir e as amigas raparigas de Eilir aprendiam a cozinhar e costurar. Sempre se consideraram uns afortunados por lhes ter sido permitido estudar. Nunca perceberam o porquê de lhes ter sido permitido crescer de maneira diferentes das outras crianças. Após a primeira recusa dos seus tutores em lhes dar uma justificação, decidiram que simplesmente gozariam da boa sorte que lhes tinha sido dada e sentiram-se abençoados.
Agora Eilir partira! A imagem de a ver afogar-se nunca desapareceria da sua memória. Perdera a sua melhor amiga sem poder fazer nada para a salvar. E culpava-se de não ter insistido mais com ela quando a tentara ensinar a nadar. Como podia ele ser rei? Como podia ele acreditar que estava destinado a salvar o seu povo se não conseguira salvar a mulher que amava?
Não sabe quanto tempo ficaram os dois naquele lugar, imóveis e em silêncio. Apenas se recorda de ter sido puxado daquele transe pelo bafo quente, de Cormac, na sua mão. E viajou em pensamento até ao dia em que ele e Eilir o resgataram.
Cormac nascera no Beltane do ano anterior, o mais pequeno da ninhada e no entanto o único sobrevivente. Fora o sétimo cachorro que nascera da ninhada de uma cadela de caça muito famosa e premiada. A cadela morreu no parto, os cachorrinhos não teriam quem os alimentasse e o dono, apesar de muito desgostoso com a sua perda acreditou que a única coisa a fazer era acabar com a ninhada para que não sofressem com a fome. Eilir e Arthan presenciaram todo o discurso de Atron, o dono dos cachorros. Eilir aproveitou o momento em que Atron se ausentou para ir buscar a sua arma e correu a agarrar um dos cachorrinhos. Pegou no último que nascera, no mais pequenino. Arthan lembra-se de quase se ter zangado com ela por se ter intrometido e ainda por cima por ter escolhido o cachorro mais pequeno e com menos probabilidade de sobreviver.
- Vais acabar por sofrer, vais prender-te ao cachorro e quando ele morrer de fome não venhas chorar no meu ombro.
A verdade é que os dois ficaram presos ao pequeno cachorro que chupava com uma força enorme no pequeno pano embebido com leite que Eilir lhe dava. Cormac crescera depressa, em apenas um ano era tão grande que quando se colocava nas patas traseiras conseguia atingir os ombros de Arthan, que com 16 anos possui-a já um robusto e bem constituído corpo de adulto.
Com a recordação da força que o seu amigo canino teve para sobreviver inculcada no seu espírito Arthan levantou-se. Não foi preciso voltar a chamar Cormac, o cachorro fielmente seguiu o seu dono que não imaginava que se encontrava a ser observado.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Luz da Terra - Parte I

Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, quando o som das vagas de espuma que rebentavam no penhasco a fez despertar. Por momentos não se recordou de nada do que se havia passado na noite anterior e o seu coração silenciosamente agradeceu à deusa o ter atendido ao seu pedido. No entanto, no pequeno espaço de tempo entre duas batidas do coração, sentiu-se. Sentiu a dor em todas as células do seu corpo, mas pior do que isso, sentiu a dor em cada pequeno recanto da sua alma. Olhou o horizonte, contemplando o sol que já nascera e se reflectia nas águas que se estendiam até perder de vista. E desejou partir, trocar tudo o que conhecia e começar de novo, num mundo novo, para lá da nona vaga. Queria renegar tudo, a sua família, a sua tribo, até os deuses, todos os que não a ajudaram quando gritara por auxílio ao ser traída pelo seu próprio povo.

Lembrara-se então de ter imaginado como seria o mar e nunca lhe passara pela cabeça que seria assim a primeira vez que o veria. Com o corpo dorido deitado na vegetação rasteira que cobria a falésia e à sombra do grande carvalho que nascera solitário naquele recôndito lugar, fechou os olhos e permitiu-se recordar a sua infância. Pensou em Arthan e em todas as tardes que passaram juntos. Em todos os sonhos que tiveram. Em todos os barcos com cascas de nozes que construíram e largaram no pequeno ribeiro onde brincavam. Sonhavam partir juntos à aventura, e ao largarem cada um daqueles pequenos barquinhos, neles partia o seu desejo de um dia verem o mar juntos.

Quando abriu os olhos descobriu que chorava. Grossas lágrimas caiam no seu colo e apercebeu-se que a sua dor era ainda maior do que julgava ser possível. Finalmente o seu coração se abrira – amava-o! Pelos deuses! Como podia uma sacerdotisa amar um homem com tanto fervor?

As lágrimas continuavam a cair-lhe e foi obrigada a concluir que fora aquele amor que despoletara a ira dos deuses, foi o amar tanto um só homem! Uma sacerdotisa deveria amar toda a humanidade, toda a natureza, a terra inteira. E o seu nome não a deixava esquecer essa obrigação que recaíra sobre ela desde o seu nascimento. Eilir, como o Alban Eilir, festival do Solstício de Primavera, sua data de nascimento. Ela era a Terra, a Sua Luz, o Seu Coração.

Com o sol a secar as suas lágrimas decidiu descer até à praia. Sentou-se na areia, com as ondas a beijarem-lhe os pés. Encheu as mãos em concha com água salgada e banhou o rosto. Sentiu o rosto e os olhos inchados, provavelmente de tantas lágrimas que chorara, e prometeu aos deuses que não choraria mais. Baniria aquele amor do coração e seria a Sacerdotisa que o seu povo precisava que fosse. E foi nesse preciso instante, quando se colocou de pé com a mão junto ao coração para finalizar a promessa, que eles se revelaram pela primeira vez.

Primeiro não passavam de estranhos reflexos na água, mas esses reflexos, apesar da ondulação do mar, tornaram-se cada vez mais nítidos, até que Eilir conseguira distinguir claramente os rostos magros de dois seres muito altos e elegantes, cujo brilho era tão forte que quase não lhe permitia que ela os olhasse. E as suas vozes, cristalinas e insinuantes, fizeram-se ouvir claramente na sua mente, repetindo-lhe insistentemente: junta-te a nós Eilir, lava o sangue das tuas mãos, mergulha… esquece… nós podemos ajudar-te a esquecer. Ele mentiu-te quando disse que te amava e traiu-te como todos os outros! E os deuses, oh, estão tão zangados… E agora nem podes chorar, prometeste que não o farias! Vem, afoga-te… É tão fácil… Vem Eilir, vem connosco!

Sabia que tinha de esquecer, sentia-o! Sabia que mesmo que pudesse chorar, nem todas as lágrimas do mundo conseguiriam apaziguar a dor que sentia, e se não a esquecesse, não conseguiria viver, não aguentaria tal provação. Mas por outro lado – não era ela a escolhida? Sentia que existia algo de terrivelmente errado em tudo o que estava a acontecer. E foi então que percebera que tinha caminhado. O mar cercara-a, viu-se rodeada de água que cada vez subia mais. O ar faltava-lhe. Não sabia nadar! Como podia ter-se deixado levar. Agora sim, os deuses nunca a perdoariam, a sua alma estava perdida. Um profundo arrependimento tomara conta de si, mas no entanto era já muito tarde, demasiado tarde. Uma última inspiração, só água entrara nos seus pulmões, e de repente fez-se noite novamente.


(em modo de escrita)

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